Verde

Era a única cor que eu já sabia.
No entanto, foi a parte do desenho que senti vontade de pedir a opinião dele:
- Que cor uso no pássaro?
E ele disse todo empolgado:
- Verde!

Traduzi, neste momento, a nossa relação:
IDENTIFICAÇÃO.
ESPELHO.
Ireal de tão real por vezes.
Ele ameniza minhas inseguranças.
Todos os amigos fazem isso de certa forma, mas há uma diferença.
Ele me apoia/acolhe/entende sendo eu comigo.
Somos a mesma pessoa, em todas as partes em que se pode ser parecido com alguém. Até nas inconscientes.

Há os que possam dizer:
"Amizade assim é uma delícia mesmo, ele sempre vai te dizer o que você quer ouvir"
Lêdo engano.
Ele retira de mim o que há de mais obscuro.
Joga na face o que insisto esconder.
Nossas conversas são quase inconversáveis de tão abstratas, e quase tudo dito em meias palavras, não precisamos nos explicar.

Uma amizade ganha sem força.
Vinda de uma noite bagunçada,
saída de outro vínculo.

Porém certeira ao ponto de tomar contas de todos os dias, horários, vontades, devaneios...
Sinto vondade de me trancar na sacada (nosso lugar) com ele,
seja para falar, ficar em silêncio, rir, chorar, dançar as músicas prediletas da balada, cantar os hinos da igreja...
Não há restrições.


A necessidade foi criada, instalada.
E era por isso que eu teimava tanto em escrever.
Sentimento escrito vira documento.
Está documentado que não sei mais passar os dias sem você.

Reparo

"Te escrevo, enfim,
me ocorre agora,
porque nem vc
nem eu
somos descartáveis"
Caio Fernando.
*

Eu deveria ter dito sim:
- Sim eu quero, estava só esperando vc fazer o convite.

Ou então, ao menos, ter explicado o não:
- Eu quero, mas a nossa conversa me deixou com receio de estar forçando qualquer coisa, não consigo ir. Não consigo ir porque me preocupo demais com o que vc pensa sobre mim. Não consigo ir porque tô com medo do que possa representar esse preocupar desnecessário. Não consigo ir porque depois, eu sei, vou querer voltar sempre.

Era simples: fazer o que eu queria.
E eu queria muito ficar com você.

Mamma

Dia desses ela ligou e fez um convite:
- Vamos ao shopping, compramos o presente do seu pai e depois podemos jantar juntas, que tal?
Ela odeia shoppings e nunca come fora de casa.
O susto não parou por ai:
- Eu te pego no seu apartamento e depois te deixo.
Foram quase dez anos tentando arranjar caronas e pouquissímas conquistas.
Quando a esmola é demais o santo desconfia, mas dei crédito: fui.
Passeamos, compramos o tal presente, conversamos, jantamos...
E quando achei que a cota de surpresas da noite tivesse atingido o limite ela disse:
- Eu pago, fica tudo por minha conta.
Pasma.
Pasma e contente.
*

Hoje, nova ligação, outro convite:
- Você não quer ir comigo na festinha do Gabriel?
- Ah... Não tô com paciência pra encontrar a família Buscapé inteira...
- Então venha almoçar aqui amanhã. Eu te busco.
- Tudo bem, amanhã eu vou.
No horário combinado (inédito) ela estava na portaria.
De blusa novelísticamente indiana e sorriso no rosto.
Conversa sem pausas durante o caminho.
Parada no supermercado para comprar os ingredientes do almoço, todos os meus prediletos.
Fiz companhia enquanto ela cozinhava.
Não me deixou ajudar.
Lembrou que está aprendendo Crochet, mostrei interesse e isso a empolgou.
Quando percebi nos vi envolvídissimas com lã e agulhas...
E até agora não consigo encontrar outra lembrança de algo que ela tenha me ensinado a fazer. Não assim, com tanto empenho, boa vontade e atenção.
Eu fiquei ali, na posição de filha.
Filha que aprende com a mãe.
E não a filha ingrata que não corresponde as expectativas maternas, posição costumeira.
- Você aprendeu rápido. Aliás, você sempre aprendeu tudo muito rápido.
E foi com esse elogio, barriga cheia e uma caixa de doces que voltei para casa.

Nada, realmente, é impossível.

*
Acordei com o canto de pássaros, vizinhos recém-descobertos.
Canto cheio de significados.
Desejei que um deles fosse o de anúncio de um bom dia.
Foi mesmo.

Peças


E assim quis o destino.
Fica a pergunta:
Há alguma razão maior?
*
Na espera.

Curitiba


"Talvez eu passe um tempo longe da cidade..."
Tirando o lixo da cabeça.

Beatriz


"Olha...
Será que ela é moça?
Será que ela é triste?"
Sim.
Tão triste quanto eu.
Carrega feridas abertas.Crônicas.
*
"Será que é pinturao rosto da atriz?"
Pintura quase perfeita.
A maqueagem da indiferença quase me enganou.
*
"Se ela acredita que é outro país..."
Sabe que não é.
Mas quer muito ser outro país.
Um em que ela não sofra tanto.
*
"E se ela só decora o seu papel..."
Sua rotina é roteiro na ponta da língua.
E por mais alternativa que seja sua vida,
cansada de seus dias ela está
*
"Se ela mora num arranha-céu...
E se as paredes são feitas de giz...
e se ela chora num quarto de hotel..."
Não mora em prédio,
odeia edifícios,
mas as paredes de sua casa são mais frágeis que giz
e já devem ter abrigado muitas lágrimas.
*
"Diz quantos desastres tem na minha mão..."
Falava de si e me descrevia.
Queria ter me identificado menos.
*
"E se eu pudesse entrar na sua vida..."
Houve um ensaio regado a vinho.
mas...
Por hora, como ela diz,
fico com a música do Chico.